22 May
TIPICIDADE E ANTERIORIDADE NA INTERPRETAÇÃO E NA JURISPRUDÊNCIA ELEITORAIS


Luiz Carlos dos Santos Gonçalves

Procurador Regional da República 


Aviso: este é um artigo escrito por um integrante do Ministério Público Federal, crítico à decisão do TSE que cassou o mandato de um ex-integrante do Ministério Público Federal. O autor gostaria, ainda assim, de expressar suas preocupações.

I – Tipicidade e interpretação

     O Desembargador Nuevo Campos, festejado ex-presidente do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, costumava dizer em seus votos que o Direito Eleitoral se submete à regra da tipicidade, vez que condiciona ou restringe o exercício de direitos políticos. Essa exigência significa que a lei deve definir exatamente qual o trecho da realidade - qual a hipótese fática - que justifica a aplicação de uma restrição ou sanção, como se vê no Direito Penal. 

   Nem sempre concordávamos com S. Excelência. 

   Em primeiro lugar, porque o Direito Eleitoral vale-se, em muitas situações, de tipos “abertos”, nos quais é tarefa judicial, com maior largueza do que no Direito Penal, examinar se os fatos se amoldam àquelas descrições mais genéricas. Em segundo lugar porque a tipicidade não é óbice para que se busque compatibilizar, pela via hermenêutica, dispositivos legais com a Constituição. 

   Como regra, nossos recursos eram desprovidos. 

   Um caso paradigmático foi o da inelegibilidade em razão de improbidade administrativa dolosa. A Lei da Ficha Limpa diz que a restrição à candidatura será reconhecida apenas se o ato de improbidade produzir, ao mesmo tempo, prejuízo ao erário e enriquecimento ilícito: 

Art. 1º São inelegíveis:

I - para qualquer cargo:

l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena 

   Assim, se a pessoa enriquecer ilicitamente em razão de seu cargo público, mas sem causar prejuízo ao erário, pode tentar a sorte junto aos eleitores. É o que acontece em certas modalidades de corrupção, nas quais se exige vantagem indevida para realizar ato de ofício que, de toda forma, teria que ser praticado. Do mesmo modo, se o agente causar prejuízo intencional aos cofres públicos, mas sem enriquecer com isso, poderá se candidatar. 

   A cumulatividade destas condições não têm boas razões para existir e desatende ao comando constitucional de proteção da sociedade em face de atos de improbidade, art. 14, § 9º. 

  Em nossos recursos, requeríamos que a inelegibilidade da alínea “l“ fosse interpretada no sentido de que bastava uma daquelas figuras de improbidade administrativa. Dizíamos que o “e” ali mencionado deveria ser lido como “ou”, alternativo. 

   Perdemos todos. 

  O TSE fixou o entendimento de que se o legislador disse “e”, não poderia o intérprete reconhecer o “ou”. 

    Inegavelmente, o “standard” de que normas restritivas devem ser interpretadas restritivamente, especialmente diante de direitos políticos, tem ótimo trânsito tanto na jurisprudência eleitoral quanto na doutrina. Em orientação que nunca nos pareceu a melhor, o Supremo Tribunal Federal decidiu que candidatos a reeleição não precisam se desincompatibilizar, ADI 1.805:

"4. A emenda constitucional que permitiu a reeleição não previu expressamente a necessidade de desincompatibilização, de modo que o silêncio deve ser interpretado de forma restritiva, uma vez que a renúncia ao cargo configuraria uma restrição ao direito subjetivo de disputar a reeleição [...]”

   Houve, é certo, exceções. Em corajosa decisão, antes mesmo que o STF reconhecesse a proteção constitucional de todas as modalidades de família, o TSE entendeu que a inelegibilidade reflexa do “cônjuge”, incluía uniões homoafetivas, REspe, Recurso Especial Eleitoral nº 24564. 

   Nota-se a evolução da jurisprudência eleitoral no sentido de coarctar situações reconhecidas como fraudulentas. Foi assim diante do lançamento de candidaturas femininas fictícias para, apenas na aparência, atender a quota de 30% de mulheres exigida pela lei. A interpretação do TSE autorizou o emprego da AIJE, Ação de Investigação Eleitoral, para questionar estas fraudes, que se caracterizam como abuso do poder político por parte dos dirigentes partidários, REspe nº 24342 – José de Freitas - PI.

   Noutro caso de grande relevância, o chamado “abuso do poder religioso”, a Corte considerou – a nosso ver, corretamente – que se a lei fala em abuso de poder político, econômico ou nos meios de comunicação social, não se poderia, por interpretação, estender o alcance da norma para esta outra e diversa modalidade abusiva, REspe nº 8285 – Luziânia – GO.

   Estas reflexões vêm à tona diante da rumorosa cassação do mandato de um deputado federal, ex-integrante do Ministério Público Federal, por entender que ele agiu com “fraude à lei”. A fraude consistiria em se exonerar do cargo diante da possibilidade de que representações  contra ele pudessem se converter em processos administrativos.

   Fraude à lei é a prática de um ato, a princípio legal, mas de modo ilicitamente orientado, conduzindo a um resultado igualmente ilícito. A tese nos serviu de lastro para muitos recursos que apresentamos, como procuradores eleitorais que fomos. 

   Foi o caso de candidatos, sabidamente inelegíveis, que renunciavam na véspera do pleito e se faziam substituir, às escondidas, por outras pessoas. Às vezes nem dava tempo de alterar os nomes na urna. O eleitor votava numa “lebre” e elegia um “gato”. 

   Não havia, antes da Lei 12.891/2013, prazo máximo para esta substituição, mas dizíamos que ela, embora não vedada pela lei, era ilícita. Depois de muitas derrotas, vimos com satisfação o TSE abraçar esse ponto de vista, REspe 99-85/SP, Paulínia, SP. 

   Pois bem: como conciliar a tipicidade das normas restritivas com o combate a situações de fraude – engodo puro e simples - e de fraude à lei, atos lícitos que produzem resultados ilícitos? 

   Quem dera houvesse uma régua que, uma vez passada, solucionaria todos os casos presentes e futuros! 

   Só que não há. 

   No caso em tela, a tipicidade favorece a causa do deputado eleito pelo Paraná. 

   Quando fala na inelegibilidade de magistrados e membros do Ministério Público, a Lei Complementar 64/90 é do seguinte teor: 

Art. 1º São inelegíveis:

I - para qualquer cargo:

q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos; 

   Os requisitos típicos são, portanto, os seguintes: aposentadoria compulsória como sanção; perda do cargo em razão de sentença; pedido de exoneração ou aposentadoria na constância de processo administrativo-disciplinar

  O Procurador não respondia a nenhum processo administrativo-disciplinar, logo, o fato de ter pedido exoneração não se amolda à exigência típica. 

   O reconhecimento da “fraude à lei” é, no caso concreto, dificultado pela existência de outro tipo de inelegibilidade, o relativo a parlamentares e membros do Poder Executivo: 

Art. 1º São inelegíveis:

I - para qualquer cargo:

k) o Presidente da República, o Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito, os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais, que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura; 

   Vale dizer, quando o legislador quis firmar a inelegibilidade causada por renúncia, o fez expressamente. 

   Difícil recusar, ao acórdão ora em comento, a característica da interpretação ampliativa. 

   Muitos entendem que a decisão exibe as mazelas trazidas pela Lei da Ficha Limpa, que seria uma norma paternalista e errônea. Assim não pensamos. O regime de inelegibilidades é essencial para assegurar eleições livres. Ele protege bens constitucionais de elevada significação, como a alternância do poder, a lisura da disputa, a probidade administrativa e a moralidade para o exercício dos cargos públicos. 

   Outrossim, criticamos, em livros que escrevemos, a cláusula relativa à renúncia dos parlamentares. Entendemos que não há como se valer de “estados mentais” ou “indicativos de comportamentos futuros” para lastrear inelegibilidades. Ver: "Direito Eleitoral", Ed. Atlas, 3ª, 2018, e “Ações Eleitorais contra o Registro, Diploma e Mandato”, Editora Publique, 2021. 

   Por idênticas razões, consideramos equivocada a decisão que cassou o mandato do ex-membro do parquet. Remetemos o leitor interessado ao percuciente  artigo publicado na página “Pensando Direito Eleitoral”, de Rodrigo López Zílio e Edson Resende de Castro: 

<a href="https://pensandodireitoeleitoral.wordpress.com/2023/05/19/inelegibilidade-membro-do-ministerio-publico-exoneracao-eleicoes-2022-parte-ii/">

II – Inovação jurisprudencial e anterioridade 

   É hora, porém, de indicar outro aspecto do acórdão que é de grande significação: trata-se de interpretação inovadora. 

   Não há notícia de que esta mesma situação, renúncia ao cargo no Ministério Público diante de representações que poderiam vir a se converter em processos administrativos, tenha sido examinada anteriormente pelo Tribunal Superior Eleitoral. 

   Soa-nos insuficiente, para afastar o caráter inovador da decisão, indicar que o tribunal “já reconheceu a invalidade de atos a princípio lícitos, porém praticados com o intuito de frustrar a aplicação da lei eleitoral”. Tanto que, quando busca uma situação assemelhada, o acórdão se vale da disputa para cargos na administração de um tribunal, cujos eleitores são os juízes daquele próprio tribunal, situação muito distinta - e regida por regras totalmente diferentes -daquela relacionada a uma eleição popular. 

   A Constituição Federal, quando traz a garantia da anualidade das leis eleitorais, o faz do seguinte modo: "Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência". 

   A melhor interpretação desta garantia constitucional estende seu campo de atuação também para a jurisprudência eleitoral. Diante de inovações hermenêuticas ou de “viragens jurisprudenciais”, fixa-se a nova tese, reservando sua aplicação a pleitos futuros. 

   É como reconheceu o Supremo Tribunal Federal ao julgar o Recurso Extraordinário n. 637485, de 01/08/20212, relatado pelo Min. Gilmar Mendes, relativo aos “prefeitos itinerantes”: 

“[...] Não só a Corte Constitucional, mas também o Tribunal que exerce o papel de órgão de cúpula da Justiça Eleitoral devem adotar tais cautelas por ocasião das chamadas viragens jurisprudenciais na interpretação dos preceitos constitucionais que dizem respeito aos direitos políticos e ao processo eleitoral. Não se pode deixar de considerar o peculiar caráter normativo dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, que regem todo o processo eleitoral. Mudanças na jurisprudência eleitoral, portanto, têm efeitos normativos diretos sobre os pleitos eleitorais, com sérias repercussões sobre os direitos fundamentais dos cidadãos (eleitores e candidatos) e partidos políticos. No âmbito eleitoral, a segurança jurídica assume a sua face de princípio da confiança para proteger a estabilização das expectativas de todos aqueles que de alguma forma participam dos prélios eleitorais. A importância fundamental do princípio da segurança jurídica para o regular transcurso dos processos eleitorais está plasmada no princípio da anterioridade eleitoral positivado no art. 16 da Constituição [...]”, [...] (2.2) as decisões do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral ou logo após o seu encerramento, impliquem mudança de jurisprudência, não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior."

   Trata-se de proteção da segurança jurídica, valor essencial para o pleno exercício dos direitos políticos, independentemente dos méritos ou deméritos da atuação anteacta de qualquer candidato específico. 

   As eleições de 2022, por conseguinte, devem ser regidas pela legislação e pela interpretação consolidada antes daquele pleito. Já para as eleições de 2024, esse caminho de interpretação extensiva certamente será lembrado... 

   Por fim, ainda que discordemos, no mérito, em relação ao quanto decidido, reconhecemos no Tribunal Superior Eleitoral a instituição que, constitucionalmente, tem a missão de interpretar a aplicar a legislação eleitoral. Não emprestamos apoio a iniciativas ou críticas que procurem diminuir ou deslegitimar este ramo da Justiça. Diante de decisões das quais se discorda, o caminho é o recurso previsto na legislação. Tampouco damos cidadania a soluções extravagantes, como uma destas anistias que desfavorecem o prestígio do Congresso Nacional. 

   A decisão merece respeito, ainda que não estejamos convencidos do seu acerto. 


22 de maio de 2023


(A foto é das Torres Del Paine, no Chile. Belíssimas!)

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