Luiz Carlos dos Santos Gonçalves [1]
Introdução
A desacertada, no particular, Lei 13.165/2015 reduziu o prazo das campanhas eleitorais ao estabelecer que o pedido de registro de candidatura deve ser feito até o dia 15 de agosto. Campanhas duram pouco mais do que 45 dias, portanto, vez que as eleições ocorrem no primeiro domingo de outubro. Essa redução favorece candidatos que já são detentores de mandatos eletivos, e incentiva uma fase de “pré-campanha”, com mal disfarçada propaganda eleitoral. Além disso, cria uma correria para todos os envolvidos no processo eleitoral e particularmente para a Justiça Eleitoral, que precisa apreciar os pedidos de registro até 20 dias antes da data das eleições. Muitas vezes os candidatos iniciam suas campanhas incertos sobre o desfecho de seus pedidos de registro.
A solução para estes problemas, como já propunham Roberta Gresta e Rodrigo Viana Pereira, seria antecipar a fase do registro para algum momento dentro dos seis meses anteriores ao pleito[2]. A proposição não foi aceita pelo parlamento brasileiro e não consta do Projeto de Novo Código Eleitoral. O que se chegou a cogitar foi o estabelecimento de uma “habilitação prévia dos candidatos”, de caráter obrigatório, a ser realizada entre 1º de fevereiro e 15 de março do ano eleitoral, como sugeria o relatório parcial nº 3 da “Comissão Especial para Análise, Estudo e Formulação de Proposições Relacionadas à Reforma Política[3]” da Câmara dos Deputados. Isso é mencionado e criticado pelos referidos autores.
A mais nova tentativa de não resolver o problema veio com a recente Lei Complementar 219, de 29.09.2025, que criou o “Requerimento de Declaração de Elegibilidade”, RDE, incluindo parágrafo no art. 11 da Lei 9.504/97. O texto é o seguinte:
"§ 16. O pré-candidato que demonstrar dúvida razoável sobre a sua capacidade eleitoral passiva, ou o partido político a que estiver filiado, poderão dirigir à Justiça Eleitoral Requerimento de Declaração de Elegibilidade (RDE) a qualquer tempo, e a postulação poderá ser impugnada em 5 (cinco) dias por qualquer partido político com órgão de direção em atividade na circunscrição.”
É dispositivo vocacionado a calar os críticos do poder regulamentar da Justiça Eleitoral. Ele não diz de quem é a competência para examinar o requerimento e a partir de quando e até quando ele pode ser apresentado. Não cuida do procedimento que deverá ser seguido, se o Ministério Público será chamado a intervir ou se é parte legitima para impugnação, quais são os efeitos da decisão e se cabe recurso. Seu objeto e sua natureza jurídica estão cercados de dúvidas. Até que venha uma resolução do Tribunal Superior Eleitoral, a inovação se mostra inaplicável[4].
O presente artigo, despretensioso e especulativo, busca suscitar o debate, explorando possibilidades e contradições do novel instituto[5].
O primeiro tema a enfrentar, do qual decorrem importantes consequências, é o objeto do requerimento.
1.O RDE inclui inelegibilidades?
A interpretação finalística do art. 3º. da LC 219/25 sugere que seu escopo é dirimir dúvidas sobre se o pré-candidato está em condições de se candidatar ou não. Essa leitura condiz com a referência à “capacidade eleitoral passiva”, que inclui as condições positivas para a candidatura, conhecidas como “condições de elegibilidade” e, por igual, a ausência das condições negativas, as inelegibilidades.
A proposta que deu origem ao RDE é de autoria do Senador André Amaral, União, PB, Projeto de Lei 3.824/2024. Segundo sua justificativa:
“A atual sistemática concentra a discussão acerca das condições de elegibilidade e das causas de inelegibilidade no momento do registro de candidatura, fase marcada por disputas acirradas e elevado volume de impugnações. Isso muitas vezes gera insegurança jurídica e instabilidade no processo eleitoral, com candidatos disputando sub judice e resultados de pleitos sendo contestados até mesmo após a eleição. O RDE é uma medida inovadora que oferece aos candidatos e partidos a oportunidade de resolver antecipadamente possíveis questões de inelegibilidade”.
Na Câmara, tramitava projeto do Deputado Federal Ricardo Ayres, Republicanos, TO, apresentado em 2023, cujo texto é idêntico ao ora aprovado pela LC 219[6].
Portanto, pela interpretação finalística, pelo uso da expressão “capacidade eleitoral passiva” e, ainda, pelo histórico legislativo da proposição, alcança-se que a declaração pretendida deve incluir as condições de elegibilidade e as inelegibilidades[7].
Outrossim, a LC 219 agiu para semear a dúvida. Em primeiro lugar, ela retirou texto que vigia na Lei 9.504/97, art. 11, § 10, e o trouxe para a lei das inelegibilidades, reforçando que:
“Art. 26-D. As condições de elegibilidade e as inelegibilidades serão aferidas no momento da formalização do registro de candidatura sem prejuízo do reconhecimento pela Justiça Eleitoral, de ofício ou mediante provocação, das alterações fáticas ou jurídicas supervenientes que afastem ou extingam a inelegibilidade, incluído o encerramento do seu prazo, desde que constituídas até a data da diplomação”.
Chama a atenção que a redação do art. 26-D distingue “condições de elegibilidade” e “inelegibilidades”, ao passo que o RDE fala somente em “Declaração de Elegibilidade”, aparentemente limitando o escopo do requerimento. Vale a máxima interpretativa de que a lei não deve conter palavras ou distinções inúteis: se ela trata separadamente aqueles fenômenos no art. 26-D, não há motivo para considerar que, em seu artigo 3º, os reuniu.
Há também um argumento vindo da interpretação topográfica. O RDE foi incluído no art. 11 da Lei das Eleições, que veicula condições de elegibilidade e registrabilidade. Se pretendesse incluir as inelegibilidades, seu lugar seria a Lei Complementar 64/90.
Assim, sem recusar a força da interpretação histórica e finalística, mas optando pela gramatical e topográfica, tem-se que o campo material do requerimento poderia se limitar à expedição da “quitação eleitoral” do requerente, como prevista no art. 11, § 7º, da Lei 9.504/97:
§ 7o A certidão de quitação eleitoral abrangerá exclusivamente a plenitude do gozo dos direitos políticos, o regular exercício do voto, o atendimento a convocações da Justiça Eleitoral para auxiliar os trabalhos relativos ao pleito, a inexistência de multas aplicadas, em caráter definitivo, pela Justiça Eleitoral e não remitidas, e a apresentação de contas de campanha eleitoral.
Era nesse sentido, segundo Gresta e Pereira [8] o teor da proposição da citada Comissão de Reforma Política, que pretendia acrescentar um parágrafo ao art. 11 da Lei 9.504/97.
A escolha não é arbitrária, pois abrange justamente as “condições de elegibilidade”, afastando, do seu intento, tanto as inelegibilidades quanto as “condições de registrabilidade”, exigências documentais para o registro. O escopo do RDE seria, assim, os itens relacionados no art. 11, § 1º ,2º e 7º da Lei 9.504/97, que abrangem as exigências constitucionais para as candidaturas [9]. É extensão especialmente bem-vinda se o requerimento for feito nos seis meses antes do pleito, o período exigido de domicílio eleitoral e filiação.
É nossa escolha interpretativa: o RDE como exame antecipado das condições de elegibilidade.
2. Natureza jurídica do RDE
Trata-se de um procedimento de jurisdição voluntária[10], não contencioso, que resultará, se presentes os requisitos, na entrega de uma declaração sobre o quanto requerido. A exemplo do que ocorre com os pedidos de registro de candidatura, a apresentação de impugnação, ou de eventual recurso da decisão, altera o caráter do procedimento, que passará a ser contencioso. Isso significa que o requerimento deve ser formulado por advogado.
A partir desta conclusão, dois caminhos se abrem.
Se o escopo do RDE é obter uma declaração sobre condições de elegibilidade, sua natureza jurídica será de “consulta individual e concreta”, do pré-candidato[11] e do partido político. É que as condições de elegibilidade, com exceção da idade mínima, são genéricas, não se referem a um cargo em particular. O RDE deverá, então, ser dirigido ao juiz eleitoral do domicílio do requerente, vez que os dados necessários para a declaração estão à disposição do cartório eleitoral. O requerente precisa, ainda assim, indicar o cargo pretendido, para o qual se considera “pré-candidato” mas a declaração teria um teor genérico. Ela será vinculativa da decisão dos tribunais eleitorais – por exemplo, se reconhecer gozo dos direitos políticos ou filiação partidária – do mesmo modo que outras decisões de competência do juiz eleitoral também o seriam. Mas essa vinculatividade é acanhada, pois envolve apenas a parte “positiva” exigida para candidaturas em geral, não suas restrições constitucionais e legais. O requerente obterá sua declaração – ou ela será negada – sem que isto represente uma antecipação da análise ampla que se faz por ocasião do registro. Nessa versão, não se trata de uma “pré-habilitação para o registro”.
Tudo muda se as inelegibilidades puderem ser objeto do pedido e da resposta ao requerimento.
É que, ao contrário dos itens do art. 11, §§ 1º ,2º e 7º da LE, o reconhecimento de uma inelegibilidade envolve considerável labor interpretativo, a ser operado no momento do pedido de registro, a não ser que tenha sido firmada em Ação de Investigação Judicial Eleitoral[12].
O RDE seria, então, uma pré-habilitação para o futuro registro de candidatura. Ele não comunga de aspectos da proposição da Comissão Especial de Reforma Política da Câmara dos Deputados, vez que não é obrigatório para os candidatos, nem tem período temporal delimitado pela lei. Tampouco funciona como requisito para o futuro pedido de registro. Ele engendra situação na qual a declaração envolverá conteúdo decisório mais amplo – na modalidade “rebus sic stantibus” - que será levado ao pedido de inscrição como candidato.
A competência para o exame do RDE depende, portanto, do alcance do seu objeto e da natureza jurídica que se dê a ele.
3. RDE e competência
O art. 121 da Constituição Federal diz que “lei complementar definirá a competência dos juízes e tribunais eleitorais”. O art. 2º da Lei Complementar 64/90[13] define a competência para o exame do pedido de registro de candidatura da seguinte forma: juiz eleitoral nas eleições para prefeito e vereador; tribunal regional eleitoral para as eleições para deputado, senador e governador; Tribunal Superior Eleitoral para as eleições para Presidente da República.
A Lei 219/2025 é complementar e poderia, portanto, alterar as regras de competência da Justiça Eleitoral. Teria ela, entretanto, criado uma espécie de competência compartilhada e eletiva para o exame dos requisitos do registro?
Se for admitida a atribuição do juiz eleitoral para o exame do RDE, e se isto incluir as inelegibilidades, serão verificados os requisitos também para as campanhas estaduais e federais. Logo, ou bem: i) a declaração será inócua perante os tribunais eleitorais, que poderão livremente desconsiderá-la quando do registro, pois o juiz teria avançado em matéria que não lhe é própria ou, ii) ela vai condicionar a decisão das cortes, com cláusula “rebus sic stantibus”.
É só imaginar pré-candidato a governador que tenha tido suas contas rejeitadas pelo Tribunal de Contas do Estado ou da União, com a aparente presença dos requisitos exigidos pela alínea “g” do art. 1º da LC 64/90 [14] . Se a competência para o RDE é do juiz eleitoral, a apreciação feita por ele, uma vez tornada definitiva, não poderia ser revista pela instância competente para o exame do registro, sob pena de se ter criado um procedimento e uma declaração desvaliosos. A ressalva seriam as alterações fáticas ou jurídicas supervenientes a sua expedição.
Esta solução, que não apoiamos, criaria uma competência a ser escolhida pelo pré-candidato ou partido. Se eles apresentarem RDE, o juiz eleitoral participará da decisão sobre o registro de candidaturas estaduais ou federais; se não o fizerem, valerá a regra da circunscrição em disputa. O requerente escolheria se quer ou não que o juiz participe da decisão sobre seu futuro registro de candidatura, segmentando, ou não, a tarefa.
Por estas razões, se admitidas as inelegibilidades como objeto do RDE, a competência para interposição, exame e decisão deve ser do mesmo órgão responsável pela apreciação do registro de candidatura, com aplicação do art. 2º da Lei Complementar 64/90[15]. A declinação do cargo pretendido, além de imprescindível para o reconhecimento da condição de pré-candidato, será utilizado para definir a competência judicial para exame do pedido.
4. Possibilidades alternativas de candidatura
Na interpretação que acolhemos, o RDE conduziria a uma declaração genérica de elegibilidade. A única variação, a idade, será deduzida exclusivamente no pedido de registro (exceto se o requerente não tiver dezoito anos nem puder alcançá-los nos marcos permitidos pelo art. 11, § 2º da LE).
Se, ao revés, o RDE for uma pré-habilitação para o registro, a especificação do cargo deverá constar tanto do pedido, quanto da declaração, pois as restrições à candidatura podem ser distintas. Por exemplo, a inelegibilidade pode ser relativa, dependendo do cargo que se ocupe ou que ocupe o cônjuge ou parente. A desincompatibilização pode ou não ser exigida [16].
5. Dúvida razoável
O RDE não se destina à satisfação da curiosidade sobre o status electoralis de alguém, nem pode ser veículo para diletantismos. Ele está relacionado com a pretensão concreta de ser escolhido numa convenção partidária, tornando-se, assim, candidato.
Existe uma presunção de elegibilidade, dada a toda a cidadania, exceto a quem tiver inelegibilidade fixada em AIJE. A “dúvida razoável”, portanto, apta a abalar aquela presunção, é condição do requerimento, devendo ser exposta de forma fundamentada pelo requerente. É uma incerteza qualificada. A inicial deve ser indeferida liminarmente, por falta de interesse processual, se não trouxer tal justificação[17].
A demonstração deve incluir a documentação ensejadora da dúvida. Por exemplo, decisão judicial, do tribunal de contas ou do órgão administrativo que suscita a controvérsia. Se a prova não estiver ao alcance do requerente, ela pode solicitar que o juízo a requisite.
O ônus de apresentar as provas em que funda sua pretensão se estende também ao impugnante, exceto se ela estiver a seu alcance. A impugnação deverá ser extinta liminarmente se ele não atendeu a esta exigência.
Defendemos, à frente, que o juiz competente para o exame do requerimento tem cognição ampla sobre a elegibilidade do requerente, podendo, ex offício, determinar a produção de provas sobre outros aspectos, ainda que não indicados na inicial ou em eventual impugnação, desde que eles repercutam na elegibilidade do requerente.
6. Prazo inicial e final para o requerimento
A LC 219/2015 não fixa prazo inicial ou final para o ajuizamento do RDE. Ao contrário, diz que o requerimento poderá ser feito “a qualquer tempo”. Outrossim, é possível extrair da exigência de “dúvida razoável” um prazo inicial incontornável para a propositura do RDE. É que, como visto acima, encontra-se o RDE limitado às eleições imediatamente subsequentes e, para tanto, há de se aguardar a estabilização normativa para o pleito.
Com efeito, a Constituição Federal disciplina que “Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. O ano antes do pleito, portanto, funciona como limite para modificações do processo legislativo, que inclui a disciplina das condições de elegibilidade e as inelegibilidades. Não há falar em dúvida razoável quando sequer se tem o alicerce normativo aplicável ao pleito.
O RDE só pode ser proposto quando faltar um ano ou menos para as eleições. Esta conclusão advém integralmente da contribuição do prezado amigo e eleitoralista ímpar, Rodrigo López Zílio.
Disto decorre a impossibilidade de buscar uma declaração de elegibilidade voltada para eleições subsequentes à mais próxima da data do requerimento. A inclusão do RDE no art. 11 da LE é significativa. Por mais amplo e aberto que seja o conceito de “pré-candidato”, a praxe política sinaliza uma inclinação à escolha pelo partido num pleito que se aproxima, não nos ulteriores. Não convém incentivar dúvidas precoces. Elas não seriam razoáveis.
O momento final para o requerimento é o início da fase de registro, pois a lei diz que o RDE é para pré-candidatos, não para candidatos. A pretensão de alguém preterido na convenção partidária a ser escolhido como eventual substituto não lhe dá a condição de pré-candidato.
7. Espaço de cognição judicial
Ficará o juízo adstrito à razão apontada pelo requerente como ensejadora de dúvida sobre sua elegibilidade? Por exemplo, se a incerteza recair sobre uma demissão do serviço público (art. 1º, I, letra “m” da Lei Complementar 64/90), pode o juiz afastá-la, mas reconhecer, com base nos registros da própria Justiça Eleitoral ou num documento juntado por eventual impugnante, causa diversa de inelegibilidade ou falta de condições de elegibilidade? Nesse caso, a decisão seria apenas de indeferimento, deixando de expedir a declaração de elegibilidade, ou traria contornos negativos, fixando a presença da inelegibilidade?
Entendemos que o RDE tem causa de pedir fechada, devendo o requerente indicar no que consiste sua dúvida razoável, mas sua cognição é ampla, permitindo ao juízo competente a verificação de outras razões impeditivas da elegibilidade. Não há falar na expedição de uma “certidão negativa de elegibilidade”, mas a necessária motivação da decisão de indeferimento do requerimento cumprirá esse papel.
O juiz poderá, assim, de ofício, determinar a vinda aos autos de todas as informações e documentos necessários para a verificação da elegibilidade do requerente. A futura resolução do Tribunal Superior Eleitoral faria bem se incluísse, entre os documentos obrigatórios para o RDE, a apresentação das certidões criminais e cíveis fornecidas pela Justiça Eleitoral, Federal, Estadual e Militar.
Registra-se o pensamento diferente de Rodrigo López Zílio, para quem o pedido, e a decisão, devem ser restritos ao tema que suscita a dúvida. É que para o renomado autor, o RDE não ocupa o papel de um pré-registro.
É uma ideia interessante, aproximando o RDE, mesmo versando inelegibilidades, da consulta individual e concreta para a qual manifestamos nossa preferência. Outrossim, se requerimento alcança inelegibilidades, o temos como uma pré-habilitação, até para assegurar sua utilidade para a Justiça Eleitoral. No momento do registro, ela teria assuntos de menos.
Nessa linha, se chega ao conhecimento do juízo uma causa impeditiva da candidatura, ele não poderia expedir uma declaração de elegibilidade. Tememos o mau uso de uma atestação que se limite a uma hipótese parcial. Aqui, um “carimbo” de que a declaração se circunscreve à questão objeto da dúvida do requerente não resolveria.
8. Legitimação. Atuação do Ministério Público
A LC 219/2025 propicia que “pré-candidatos” e “partidos políticos” requeiram a declaração de elegibilidade. Como exposto acima, a lei não definiu quem seriam estes interessados, nem a partir de quando sua pretensão deixa de ser meramente cogitativa e assume contornos político-jurídicos. A condição será definida por mera afirmação do requerente, a menos que a regulamentação do Tribunal Superior Eleitoral ou sua jurisprudência avancem no reconhecimento dos requisitos para seu reconhecimento.
Não há exigir pleno gozo dos direitos políticos do requerente como condição do requerimento , pois este é justamente um dos itens da quitação eleitoral, sobre o qual pode existir dúvida relevante.
São legitimados o pré-candidato e o partido a que estiver filiado. A nosso ver, haverá necessidade de autorização expressa do filiado para que o partido faça o requerimento. Esta exigência veda que a grei partidária se valha do RDE para descobrir restrições aos direitos passivos de algum de seus membros, em eventual contraposição ao interesse dele. É via de mão única: o pré-candidato não precisa obter aquiescência do partido para o RDE.
A lei fala apenas em “partido político” e exclui, portanto, as federações. É certo que a estas, a teor do art. 11-A, § 8º da Lei das Eleições, aplicam-se “todas as normas” que “regem as atividades dos partidos políticos no que diz respeito às eleições, inclusive no que se refere à escolha e registro de candidatos para as eleições majoritárias e proporcionais”. Outrossim, a limitação aos partidos fica clara com a exigência de que eles tenham órgão de direção em atividade na circunscrição. Se a Federação quiser obter uma declaração de elegibilidade, deverá convencer o partido e/ou o filiado a este a propô-la.
A despeito do papel constitucional do Ministério Público na defesa da ordem democrática, não o vemos como legitimado para o RDE. É, de começo, um requerimento não contencioso, que não envolve situação na qual estão expostas a risco a lisura e a legitimidade do pleito, predominando o direito individual e disponível dos requerentes. A atuação do Ministério Público, nesse caso, será apenas a de fiscal da lei, devendo ser cientificado do requerimento. Não lhe cabe presumir que determinada pessoa é “pré-candidata” ou que haja incerteza sobre sua elegibilidade. Até porque, exceto se houver fixação de inelegibilidade em Ação de Investigação Judicial Eleitoral, vigora para toda a cidadania a presunção de elegibilidade.
A apresentação do requerimento significa, porém, que o próprio futuro candidato e seu partido estão em dúvida sobre aquele status. Assim, uma vez proposto o requerimento, surge o interesse e a legitimidade do Ministério Público para impugná-lo, pois ele poderá produzir efeitos em futuro pedido de registro de candidatura. Se a impugnação for de terceiros, o MP também deverá atuar como custos legis.
Não se pode desconsiderar que o indeferimento do RDE implica que o pré-candidato não está apto a concorrer às eleições ou ao cargo pretendido. Logo, ele pode não ter muito interesse em informar tal situação quando do pedido do registro, papel que convém ao Ministério Público (e, certamente, à própria Justiça Eleitoral). O resultado, favorável ou desfavorável ao requerente, deve ser anotado em sede adequada.
9. Efeitos da decisão
O objetivo do RDE é obter uma “Declaração de Elegibilidade”. Na interpretação que optamos, isso significa tão-somente que, quando da decisão, o requerente ou a pessoa em prol de quem se pede ostenta condições de elegibilidade, art. 11, §§ 1º2º e 7º. A decisão do juiz eleitoral não produzirá outros efeitos, nem avançará sobre a competência dos tribunais eleitorais. Quando do registro, aquela declaração terá vinculatividade apenas em relação à matéria que já seria de competência do juízo de primeira instância, como verificar o gozo dos direitos políticos e a existência (e talvez o prazo) de filiação partidária.
Se, porém, tratar-se de uma “pré-habilitação eleitoral”, versando todos os aspectos da capacidade eleitoral passiva do interessado, a declaração será vinculativa para o órgão que for examinar o registro[18], anda que gravada pela cláusula “rebus sic stantibus”, ou seja, sem imunidade contra alterações fáticas e jurídicas posteriores. Daí a alteração da competência para conhecer o RDE, que será do juízo ou tribunal da circunscrição.
Não vemos como seria possível a um juízo ou tribunal expedir a declaração de elegibilidade e, ao depois, na fase do registro, sem aquelas alterações supervenientes, simplesmente desconsiderá-la.
O art. 257, caput, do Código Eleitoral nega efeito suspensivo às irresignações. Ou seja, a não ser que seja concedida tutela suspensiva, a declaração produzirá seus efeitos próprios ainda que desafiada por recurso.
10. Recursos
O requerente, inconformado com decisão adversa, poderá apresentar recurso. O mesmo vale para o impugnante e o Ministério Público. Se a decisão for do juiz eleitoral, caberá a irresignação do art. 265 do Código, com o prazo de três dias, art. 258. Se a decisão for de tribunais eleitorais, aplicar-se-á o regramento do art. 121, §§ 3º e 4º da Constituição Federal[19], art. 276 do Código Eleitoral, com idêntico prazo. Se a decisão de tribunal regional eleitoral incluir inelegibilidades nas eleições federais ou estaduais, abre-se a oportunidade para o recurso ordinário, art. 121, § 4º, III. Por analogia com o art. 12 da Lei Complementar 64/90, o recurso especial interposto da decisão no RDE não se submeterá a juízo de admissibilidade no tribunal de interposição.
11. Concomitância entre a tramitação do RDE e o pedido de registro de candidatura
Aspecto de maior interesse, diante da não fixação de termo inicial ou final para a propositura do RDE é sua tramitação se estender até depois das convenções partidárias, alcançando a fase do registro ou, até, indo além dela.
Somos da opinião que, iniciada a fase do registro, fica prejudicada a pretensão à obtenção da declaração de elegibilidade. Solução contrária envolveria tumulto processual e aumentaria a incerteza, ao invés de mitigá-la. No mesmo sentido vai Rodrigo López Zílio. Afinal, é na fase do registro que os efeitos práticos daquela declaração podem operar. Se ela tiver sido obtida até então, poderá instruir o pedido de registro de candidatura; se não, torna-se inútil, diante de sua correlação com a eleição mais próxima ao momento do requerimento. O registro de candidatura terá, para todos os efeitos, a força de declarar a elegibilidade ou inelegibilidade do pretendente. Rogério Vargas propõe, alternativamente, que o requerimento seja encaminhado ao juízo competente para o registro, quando este já tiver se iniciado.
Conclusões provisórias:
1. A melhor solução para a incerteza e correria advinda do curto espaço para exame do pedido de registro de candidatura e para a campanha eleitoral é a antecipação da fase do registro, dentro dos seis meses anteriores ao pleito.
2.O Requerimento de Declaração de Elegibilidade não é uma boa solução.
3. A Lei Complementar 219/2025 não trouxe elementos suficientes para a aplicabilidade do Requerimento de Declaração de Elegibilidade, o que demandará normativa regulamentar a ser elaborada pelo Tribunal Superior Eleitoral.
4. O RDE instaura um procedimento de jurisdição voluntária, não contencioso, situação modificável pela apresentação de impugnação ou recurso.
5. O Objeto do RDE são as condições de elegibilidade, sendo, portanto, de competência do juiz eleitoral do local de domicílio do requerente. É uma “consulta individual e concreta”, com efeitos vinculativos limitados apenas às questões que seriam, de todo modo, de competência do juíz eleitoral.
6. Se for admitido seu papel também em relação às inelegibilidades, a natureza jurídica do RDE muda para “pré-habilitação eleitoral”, com a competência judicial fixada de acordo com a circunscrição em disputa (art. 2º da LC 64/90) e produção de efeitos vinculantes, com a cláusula “rebus sic stantibus”.
7. São legitimados o pré-candidato e o partido político ao qual esteja filiado. O partido precisa obter a anuência do pré-candidato para formular o requerimento. É parte legítima a instância partidária correspondente à circunscrição do cargo pretendido. O Ministério Público não está legitimado para fazer o requerimento, devendo atuar como custos legis, sendo também parte legítima para a impugnação e recurso.
8. A demonstração, de plano, da “dúvida razoável” é condição da ação, devendo a inicial ser indeferida liminarmente se não for feita. Exige-se uma “incerteza qualificada”: o requerente deve indicar exatamente qual a hipótese fático-normativa que a gera. Cumpre a ele trazer a prova de que dispuser e requerer a que não estiver em seu alcance. Ao impugnante incumbe apresentar qualquer causa de impedimento que souber, com Idêntico ônus probatório.
9. Só há reconhecer dúvida razoável uma vez estabilizado o marco normativo do pleito que se avizinha, à luz do art. 16 da Constituição Federal. Portanto, só no ano que antecede o pleito é possível fazer o requerimento. Disto decorre que o RDE não é cabível em relação a eleições subsequentes à mais próxima da data da inicial. O termo final é a fase de registro de candidaturas. A lei fala em “pré-candidatos”, não em “candidatos”.
10. O pedido de registro de candidatura funciona como verificador da elegibilidade ou inelegibilidade de alguém. A partir dele, RDE em tramitação deve ser apensado ou extinto, para evitar tumulto processual e incremento da incerteza.
11. A despeito do pedido ”fechado”, o RDE autoriza a cognição ampla do juízo competente. Se ele encontrar razões impeditivas da expedição da declaração de elegibilidade, o requerimento será indeferido. O juiz competente tem capacidade instrutória de ofício e a impugnação pode versar sobre qualquer aspecto da elegibilidade do requerente, não se limitando àquela dúvida por ele avançada.
12. Se o requerente não fizer jus à declaração de elegibilidade, ela deverá ser indeferida. Não há falar em “declaração negativa de elegibilidade”, conquanto a motivação da decisão deva indicar as razões do indeferimento.
13. Da decisão do juiz eleitoral, cabe o recurso do art. 265 do Código Eleitoral, com o prazo de três dias. As decisões dos tribunais se submetem aos recursos previstos no art. 121, §§ 3º e 4º da Constituição. Quando a decisão do tribunal versar sobre inelegibilidade nas eleições estaduais ou federais, admissível o recurso ordinário. Se for caso de recurso especial, ele não se submete a juízo de admissibilidade na corte de interposição, por analogia com o art. 12 da Lei Complementar 64/90.
14 Nenhum dos recursos cabíveis na tramitação do RDE tem efeito suspensivo, art. 257 do Código Eleitoral. Logo, ainda que emitida por decisão recorrível, a declaração produzirá seus efeitos próprios, salvo concessão de tutela em sentido diverso.
[1] Procurador Regional da República – 3ª. Região. Membro-Auxiliar da Procuradoria-Geral Eleitoral. Mestre e Doutor em Direito do Estado- PUC/SP
[2] “Antecipação do registro de candidatura: uma reflexão em favor da estabilidade do processo eleitoral”. In: AGRA, Walber; FUX, Luiz; PEREIRA e Luiz Fernando Casagrande: “Tratado de Direito Eleitoral”, Belo Horizonte, Editora Fórum, 2018.
[3] De 13.09.2017.
[4] É como observa Delmiro Campos, em artigo publicado no Conjur em 13.10.2025, com o título “O RDE e a segurança jurídica nas eleições de 2026”. Diz ele: “Apesar dessas potencialidades, o RDE, em sua redação atual, carece de estrutura normativa consistente, especialmente quanto à natureza da decisão judicial, à formação de coisa julgada, à inexistência de vínculo aos efeitos e à ausência de prazos para propositura. O legislador acabou por criar um instituto de contornos fluidos cuja aplicabilidade dependerá quase integralmente da futura interpretação do Tribunal Superior Eleitoral”. Disponível em https://www.conjur.com.br/2025-out-13/o-rde-e-a-seguranca-juridica-nas-eleicoes-de-2026/. Consulta em 17.11.2025.
[5] O anjo das coincidências felizes propiciou que estivéssemos, ao mesmo tempo, em Brasília, Rodrigo López Zilio, Rogério Vargas e eu mesmo, envoltos em tarefas da Procuradoria-Geral Eleitoral e da Justiça Eleitoral. Conversamos muito, então. A maior parte do tempo foi sobre a difícil situação do Santos F.C. e do Internacional de Porto Alegre, mas falamos um pouco sobre direito eleitoral também. O texto acima seria impossível sem a contribuição dos prezados colegas, ainda que, como é próprio diante de complexa novidade, nossas opiniões ainda estejam em formação, com concordâncias e discordâncias.
[6] Segundo notícia na página do escritório de advocacia “Márlon Reis e Storílio”, tratar-se-ia de sugestão por eles feita à Câmara dos Deputados. Digno de nota é que, a notícia sugere a legitimação também do Ministério Público, a partir da Constituição Federal, para a propositura do RDE, tese que, mais a frente, afastamos. Disponível em: https://mreadvocacia.com.br/candidaturas-sem-riscos-entra-em-vigor-norma-legal-sugerida-pelo-escritorio-marlon-reis-estorilio/. Consulta em 17.11.2025.
[7] Francisco Dirceu Barros, em artigo publicado no Migalhas, em 03.11.2025. Parra ele, o RDE inclui condições de elegibilidade, de registrabilidade e as inelegibilidades.Ver: “A nova consulta sui generis da Justiça Eleitoral”, disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/443535/a-nova-consulta-sui-generis-da-justica-eleitoral. Consulta em 17.11.2025.
[8] obra citada.
[9] Constituição Federal, art. 14. [...] § 3º São condições de elegibilidade, na forma da lei: I - a nacionalidade brasileira; II - o pleno exercício dos direitos políticos; III - o alistamento eleitoral; IV - o domicílio eleitoral na circunscrição; V - a filiação partidária; VI - a idade mínima de: a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador; b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal; c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz; d) dezoito anos para Vereador.
[10] Rogério Vargas nos convenceu de que a locução “jurisdição voluntária” é mais apropriada do que “procedimento administrativo”, até para assegurar que o requerimento seja examinado e proposto por advogado, como se faz no pedido de registro.
[11] Francisco Dirceu Barros, artigo citado, diz que se trta de uma “consulta sui generis”.
[12] Única ação na qual o decreto de inelegibilidade consta do disposiivo da decisão, conforme o art. 22, XIV da LC 64/90. Nas outras hipóteses, o “fato gerador” da inelegibilidade deverá ser apreciado no momento do registro.
[13] Art. 2º Compete à Justiça Eleitoral conhecer e julgar as arguições de inelegibilidade. Parágrafo único. A arguição de inelegibilidade será feita perante: I - o Tribunal Superior Eleitoral, quando se tratar de candidato a Presidente ou Vice-Presidente da República; II - os Tribunais Regionais Eleitorais, quando se tratar de candidato a Senador, Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal, Deputado Federal, Deputado Estadual e Deputado Distrital; III - os Juízes Eleitorais, quando se tratar de candidato a Prefeito, Vice-Prefeito e Vereador.
[14] Art 1º. São inelegíveis: I - para quaisquer cargos: [...] g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição.
[15] É a opinião de Edirlei Barbosa Pereira de Souza, em artigo publicado no Migalhas, em 11.09.2025, com o título: “A nova certidão de elegibilidade prévia perante a Justiça Eleitoral”. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/439741/a-nova-certidao-de-elegibilidade-previa-perante-a-justica-eleitoral. Consulta em 17.10.2025.
[16] Uma possibilidade é que a declaração se limite às condições de elegibilidade genéricas e às inelegibilidades absolutas. Ela se tornaria menos útil, mas bem mais simples. As especificidades das condições para a disputa do cargo efetivamente pretendido viriam exclusivamente no momento do registro. Entretanto, se a própria competência do tribunal é dada pelo cargo pretendido, soa estranho que uma “declaração de elegibilidade” não examine tudo o que se refira a capacidade eleitoral passiva do requerente.
[17] Observa Gidean Melo da Silva, em artigo publicado no JusBrasil, que: “ é imprescindível que a Justiça Eleitoral mantenha o controle sobre o uso legítimo do RDE, limitando sua aplicação às hipóteses em que realmente exista dúvida jurídica razoável e fundada, sob pena de transformar o instituto em mecanismo de tumulto processual e insegurança jurídica”. In: O Requerimento de Declaração de Elegibilidade (RDE) e o Risco de sua utilização por candidatos inelegíveis como Instrumento de Tumulto Eleitoral”. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-requerimento-de-declaracao-de-elegibilidade-rde-e-o-risco-de-sua-utilizacao-por-candidatos-inelegiveis-como-instrumento-de-tumulto-eleitoral/5282130678. Consulta realizada em 17.10.2025.
[18] Também é esta a opinião de Francisco Dirceu Barros, artigo citado, embora ele não faça a ressalva da cláusula “rebus sic stantibus”.
[19] “§ 3º - São irrecorríveis as decisões do Tribunal Superior Eleitoral, salvo as que contrariarem esta Constituição e as denegatórias de habeas corpus ou mandado de segurança. § 4º - Das decisões dos Tribunais Regionais Eleitorais somente caberá recurso quando: I - forem proferidas contra disposição expressa desta Constituição ou de lei; II - ocorrer divergência na interpretação de lei entre dois ou mais tribunais eleitorais; III - versarem sobre inelegibilidade ou expedição de diplomas nas eleições federais ou estaduais; IV - anularem diplomas ou decretarem a perda de mandatos eletivos federais ou estaduais; V - denegarem habeas corpus , mandado de segurança, habeas data ou mandado de injunção”.