26 Feb
Ainda há juízas em Berlim. Reflexões sobre compra de votos e prova testemunhal

     Luiz Carlos dos Santos Gonçalves

Em “O moleiro de Sans-Souci”, o escritor François Andriex (1759-1883) conta a resposta que um homem simples teria dado ao Imperador alemão, que pretendia desapropriar seu moinho: “ainda há juizes em Berlim”. Essa frase, que mostra a confiança das pessoas em seus juízes, não raro é desconfirmada, em nosso pais, por decisões atabalhoadas e pouco razoáveis. Há vezes, porém, em que ela é confirmada em toda a esperança que traz para a cidadania.

     O caso a seguir narrado é um destes e se refere à compra de votos nas eleições.

     Já havia compra de votos nos tempos do império. O artigo 101 do então Código Criminal mandava prender por três a nove meses  e multar quem, usando de promessas de recompensa ou ameaçando algum mal, comprava ou vendia votos. E determinava a perda do emprego de quem tivesse se utilizado dele para cometer o crime (taí uma boa ideia!). Desde então, eleição após eleição, essa prática persiste. É uma forma de explorar a miséria, a ignorância e a cupidez de muita gente, que acha um  bom negócio receber presentes de políticos pois, afinal, “eles são todos iguais” e “não fazem nada”. E a cada centavo, dentadura, padrão de luz, cesta básica e carta de motorista (nas modalidades “com” e “sem” exame) o eleitor desavisado ou ganancioso contribui para que tudo reste como sempre esteve, todos iguais, todos sem fazer nada. O dinheiro da compra de votos, no fim das contas, tem que sair de algum lugar e os cofres públicos têm sido generosos.

    O artigo 299 do Código Eleitoral, corrupção eleitoral, diz que comprar ou vender votos é crime, com pena de um a quatro anos de reclusão:

Art. 299. Dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita:

Pena – reclusão até quatro anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa.

O problema é que o processo-crime, até em razão das garantias que deve oferecer, demora. Muitas vezes, demora mais que o mandato que felicitou o corruptor eleitoral.

    O artigo 41-A da Lei 9.504/97 trouxe a versão cível deste ilícito, rebatizado de “captação ilícita de sufrágio”:

“Art. 41-A. Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui captação de sufrágio, vedada por esta lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinquenta mil Ufirs, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990.”

Este artigo adveio por obra de iniciativa popular e foi na jugular e na veia cava dos corruptores, ao dizer que o candidato condenado terá cassado o seu registro ou diploma. O processo é mais rápido e pegou de calças curtas muitos candidatos inescrupulosos por aí. A Lei da Ficha Limpa também veio bem e permite que, desde a condenação colegiada, o comprador de votos fique inelegível (art. 1o, I, letra “j”, da LC 64/90).

    Difícil é fazer a prova deste ilícito.

    Cedo se percebeu que não era difícil “arranjar” testemunhas de compra de votos, que surgiam do nada logo após a proclamação da vitória do adversário nas eleições… Ou então, iam ao cartório, “espontaneamente”, ao longo da campanha, fazer declarações públicas que só vinham a lume depois do dia da votação… Eta coincidência! Ao invés de procurar o Ministério Público, a Polícia ou o Juízo Eleitoral, iam ao cartório... O TSE chamou essa prática de “acervo tático de provas”.

    O legislador correu e proibiu que prova testemunhal única fosse suficiente, art. 368-A:

“A prova testemunhal singular, quando exclusiva, não será aceita nos processos que possam levar à perda do mandato”.

  Aqui e ali, porém, se decidia que, não importava a confiabilidade das testemunhas, nem seu número, nem a coerência entre depoimentos diversos: a prova testemunhal seria imprestável. Eram exigidos documentos que atestassem a compra de votos (sim, já houve caso) ou uma gravaçãozinha feita por celular.

    Em boa hora veio o acórdão do TRE-SP, no Recurso 72.128, da cidade de Meridiano, em São Paulo, relatado pela sempre corajosa juíza Cláudia Fanucchi (a primeira condenação à perda de cargo por fraude nas quotas femininas, caso de Santa Rita de Viterbo, também foi relatado por ela). É um julgamento de agosto de 2017. Ela cita precedentes do TSE (relatado por outra mulher, a Ministra Luciana Lóssio, REspe n. 20268) e conclui que: “a captação ilícita de sufrágio pode ser demonstrada exclusivamente com base em prova testemunhal, desde que esta seja harmônica e robusta".

Ainda há juízas em Berlim!

Verificou a magistrada:

“(...) DEPOIMENTOS COLHIDOS SOB O CRIVO DO CONTRADITÓRIO E SOB AS PENAS DE INCORREREM NO CRIME DE FALSO TESTEMUNHO, PRESTADOS DE FORMA CONSISTENTE, UNÂNIME E LINEAR, ALÉM DE FAZEREM REFERÊNCIAS A CERTAS PECULIARIDADES QUE DIFICILMENTE PODERIAM SER COMBINADAS OU INVENTADAS. PROPÓSITO DE CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO EVIDENCIADO. EVIDENTE O CONHECIMENTO E CONSENTIMENTO DOS CANDIDATOS... FATO PRATICADO POR INTERPOSTA PESSOA QUE POSSUI LIGAÇÃO COM OS CANDIDATOS. GRAVIDADE DOS FATOS QUE JUSTIFICA AS SANÇÕES DE CASSAÇÃO DO DIPLOMA DOS CANDIDATOS ELEITOS E MULTA (...)”

    A Corte Eleitoral Paulista, à unanimidade, seguiu o voto da relatora.

    Esse o julgado que o TSE confirmou em decisão de 12 de fevereiro de 2019, conforme noticiado na página oficial: “Provas testemunhais consistentes podem ser único meio para atestar compra de votos - Entendimento jurisprudencial do TSE foi reafirmado durante julgamento que manteve a cassação dos mandatos do prefeito e da vice-prefeita de Meridiano (SP), eleitos em 2016”

   A prova tem que ser robusta, inconcussa, boa, lícita, confiável, austera, sem ambiguidades, harmônica, forte, lídima, indene de máculas, sem invencionices ou partidarismos. Redondinha.  

    Claro! 

    Mas pode ser testemunhal, se for mais de uma."







Ver:

http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2019/Fevereiro/provas-testemunhais-consistentes-podem-ser-admitidas-como-unico-meio-para-atestar-compra-de-votos?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter

    

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